08 January 2012

getting personal about 2011

O ano de 2011 passei-o inteiro em Durham, na Carolina do Norte seguindo com o trabalho de professora. Aparentemente um ano desinteressante. Mas não. Não estive só no apartamento, Vida, minha cadela - ou talvez eu deva dizer que eu sou a humana dela tão grande é a afeição que existe entre nós que não poderia afirmar de certo quem pertence a quem – viveu o ano todo comigo. Adotei-a em agosto de 2010. No início ela estava esquiva dos meus afetos, talvez porque tenha sofrido algum abuso, talvez por ter a personalidade assim mesmo, nunca saberei dizer ao certo. O fato é que no ano de 2011, Vida aproximou-se de mim de tal maneira que parecemos um casal. Dorme na minha cama, na maioria das vezes ao pé da cama, por cima do edredon, enrolada em seu cobertozinho que eu lhe comprei e o qual já carrega o cheiro dela. Mas às vezes, geralmente de madrugada, vem deitar ao meu lado debaixo do edredon. Claro que tive que ensiná-la que isso era uma possibilidade. Tive que puxá-la várias vezes. Fazia isso quando estava com frio ou o sentimento de carência era insuportável. O interessante é que ela aprendeu o processo. E agora, por ela mesma, caminha sobre mim de madrugada, chega perto e com o focinho tenta levantar o edrendon para que ela possa se alojar lá dentro perto de mim. Acho isso fenomenal, embora saiba que muitas pessoas achariam repugnante.

Com Vida fiz caminhadas diárias. Só não caminhamos 362 dias no ano de 2011 porque viajei no dia 28 para Salt Lake City – de onde estou de volta nesse momento em que escrevo essas linhas, de dentro do avião.  Visitamos parques, trilhas e vizinhanças. Nossa trilha predileta é a que se chama American Tobacco Trail. Mas tenho a impressão que Vida gosta mais de uma ex- fazenda de escravos (Leigh Farm) que agora pertence ao munícipio. Há muitos  veados na fazenda, e Vida fica muito agitada quando lá vamos. Bota o focinho no chão e sai a cheirar cada cantinho por onde andamos. Não gosto muito de lá. O motivo principal é justamente porque lá perdi Vida uma vez. Quer dizer, ela escapuliu. Caminhávamos quando nos demos quase cara a cara com um veado parado como estátua e como se estivesse cego. A coleira fraca de Vida não resistiu quando os 13 kilos que ela tem aceleraram em direção ao veado. E pronto!, fiquei com a colera na mão vendo-a desaparecer atrás do veado. Estive nervosa mas como ela também tinha sumido uma semana antes (já-já conto esses detalhes) tentei me acalmar. Acontece que como ela arrebentou a coleirinha do pescoço onde fica a plaquinha com o seu nome e o número do meu telefone, desabei a pensar no pior. Nunca mais ver Vida; a probrezinha durante a noite sozinha sem comida e sem saber para onde ir; eu em casa aos prantos sem poder trabalhar ou me funcionar como “ser humano” – tudo isso passa pela mente muito rápido, o coração dispara, é horrível. Um rapaz que trabalha no local veio me ajudar a procurá-la. Sugeriu que eu segurasse um pedaço de queijo, que o esfregasse para espalhar o cheiro, e que saísse a chamar pelo nome dela. Fiz. Apareceu logo depois atrás de mim balançando o rabinho freneticamente, toda molhada e suja, e obviamente cansada da sua saga de tentar apanhar o veado. Segurei-a no colo enquanto ela devorava o queijo assegurando-me de que ela iria a nenhuma outra parte.

Agora a primeira vez que ela desapareceu extamente uma semana antes do episódio acima foi-me uma tragédia devastadora. A mais infernal hora e meia que já tive. Bem, era o verão. Estávamos no parque que se chama Eno River. Dias antes eu tinha começado a ensiná-la a entrar na água do rio. Nesse dia percebi que ela já estava bem acostumada com a água, então tentei colocá-la numa parte mais funda para que ela nadasse. O resulto foi positivo, e a minha alegria e orgulho como de uma mãe. A minha cadela tinha nadado de uma margem do rio à outra! Estava nessa euforia dizendo em inglês “good girl” sem parar quando a pus na margem sem a coleira, e ali ficamos um pouco em plena comunhão de amor; incondicional do animal para o humano. Esse último é incapaz de tanto altruísmo, estou convicta. Enfim, algum bicho se moveu atrás de nós; é bem provável que foi outro veado, e como relâmpago lá se foi minha Vida, pulando feito uma veadinha (há femino de veado?) ela mesma. Meus reflexos me fizeram agarrar o que estava na areia junto à margem do rio: o celular, as chaves, e os tênis não tive tempo de calçá-los corretamente, só fiz enfiar os pés para ter uma proteção que fosse, mas cardaços não foram atados e nem as partes traseiras do calçado tive tempo de encaixá-las aos pés. Corri mata a dentro. Nos primeiros minutos eu a via pulando nos recantos mais complicados, onde o mato fazia emaranhados que para uma pessoa era quase impossível lá entrar. Eu gritava seu nome o mais alto que conseguia e com a maior autoridade que já fui capaz de impor através da voz, mas ela em seu êxtase, com seu insituto natural à caça, num momento de sensação de liberdade, não sei o que era aquilo, não me respondia. Por fim, ela desapareceu. Nos segundos seguintes ainda tentei localizá-la, inútil. O inefável se passou a seguir. Um estado de horror total, pânico e terrível sensação de incapacidade tomaram conta de mim. Liguei para o 911 (a polícia). Sim, isso mesmo. Não é que eu pensei que eles fossem me ajudar a encontrar Vida. Não tive tanta pretensão. Mas como é de lei nessa terra tive que explicar à senhora que me atendeu onde eu estava e porque telefonava para a polícia. Fiz tudo muito rapidamente, e perguntei-lhe se poderia me dar o número do telefone do escritório do parque, pois que eu tentaria pedir ao guarda-florestal para me ajudar a econtrar minha Vida. A polícia foi excelente, acreditam? Disse que providenciaria para que o parque me telefonasse logo em seguida. E aí começou o problema. A pessoa do parque que me telefonou quis saber onde extamente eu estava para que um guarda-florestal pudesse ir ter comigo. Mas lá sabia eu? No meio do mato. De fato, eu não sabia nem como voltar para uma das entradas do parque onde havia estacionado o carro. A pessoa, então, deixando transparecer um pouco de irritação em sua voz me ordenou que eu voltasse para a entrada; só assim, disse ela, um guarda-florestal poderia me encontrar lá. Mas a entrada está há mais ou menos uma milha e meia de distância, se eu sair daqui em direção oposta não vai ficar mais difícil encontrá-la depois? Perguntei com voz já se resignando ao péssimo. Ma’am, you must go to the entrance; that’s the only way we can help you. Está bem, estou indo. Comecei a correr em direção à entrada, o coração saltava rápido demais, os pés mal-calçados nos tênis não ajudavam, e na minha mente eu só conseguia imaginar que a estava abandonando. Uma mãe abandonando a filha, que horror meu-Deus! Como dói amar assim? Como é que sobrevive uma mãe que perde seus filhos?, pensei. Estava a ponto de perder uma cadela, e  esse desespero que me consumia era mais negro que as profundezas de um oceano distante, desconhecido. Caí num abismo. Corria, cansava-me rápido. De repente tive a sensação de estar tendo um ataque de pânico, pois não conseguia respirar. Mas agora naquele momento era impróprio ter um ataque desses! Eu tinha que pensar na minha Vida, e não na física da qual se constitui meu corpo, mas na outra. Sim, minha cadela! Parei de correr. Fiz uns exercícios de respiração. Nesse intérim, telefonei para uma de minhas amigas (havíamos, eu, ela e outra marcado de jantarmos juntas num sushi). Disse-lhe de sopetão que não me esperassem porque tinha perdido Vida no parque. Meu Deus, estamos indo para aí agora para te ajudar, respondeu minha amiga. Sem tempo para agradecimentos, disse-lhe que anotasse o endereço e as direções. Pronto, animei-me um pouco e continuei a corrida. Dizem que nessas horas de pavor, cada segundo vale por uma eternidade. Ninguém sabe quanto vale mesmo uma eternidade, mas o ditado não podia ser melhor. O tempo e distância se fizeram meus inimigos mais amargos e mortais que já tive. Pessoas passavam por mim com os seus cãezinhos, e eu gritava-lhes perguntando se tinham visto uma beagle misturada com daschund, preta, de peito branco e marrom. Não, não vi, mas se a vir, seguro-a para você, diziam todos sem precisarem questionar-me o que é que havia acontecido tão aparente era a situação. Arrastei-me, por fim, até a entrada onde estacionara o carro, mas já começando a achar que aquilo tinha sido uma má idéia. Talvez a pior de todas. Lá chegando telefonei mais uma vez para o escritório do parque. Fui atendida por outra pessoa que alegou desconhecer o meu “problema.” A minha voz resignada de antes deu lugar a uma mais alterada. Expliquei-lhe outra vez tudo, do início, inclui o telefonema anterior em que haviam me dito para ir à entrada encontrar-me com um guarda-florestal. Todos estão ocupados agora, a senhora vai ter que esperar até eu conseguir alguém que possa ir lhe ajudar, disse essa nova “pessoa”. Busquei com muita força um resto de humildade porque naquele momento eu precisava de qualquer e mínima ajuda que fosse. Please try your best as soon as possible to help me. I’ve run here; my dog is there lost. I could’ve stayed there looking for her; the park is going to close in another 30 minutes. Please, please, please. Chorei. Um pouco mais compadecida, acho, a “pessoa” prometeu que um guarda-florestal me telefonaria logo em seguida. Telefonar? Não era encontrar? Está bem. Desliguei. Nisso, minhas amigas chegaram. Estavam assustadas quando me viram pois eu que nunca perdia a compostura parecia a ponto de um ataque de nervos. Uma hora já havia se passado. Onde estaria minha Vida? Teria ela corrido em direção à estrada? Teria sido encontrada por alguém que a achou engraçadinha demais como ela é e por pura vileza decidiu se tornar o dono dela embora ela carregasse uma placa avisando onde era o seu lar? Ela está lá. Eu tenho que voltar. Não vou esperar guarda-florestal coisa alguma, disse para as minhas amigas. Combinei que uma ficasse lá no caso do guarda chegar. E a outra imediatamente sem eu dizer nada se propôs a ir comigo em busca da minha Vida. Pronto. Resolvi que eu devia voltar para o mesmo lugar de onde ela tinha desaparecido, e que minha amiga devia ir pela mata no caso de ela estar lá. Começamos o caminho de volta. Assim que começamos a jornada de volta, eu ouvia minha amiga gritando o nome de Vida  enquanto sacudia um saquinho aberto com ração para cães no intuito de atraí-la. Aquilo me acanlentava um pouco. Ah, os amigos! Eu mesma já não tinha forças para gritar o nome Vida, mas pernas funcionando eu ficaria ali até mesmo depois de se fechar o parque, ah isso sim. Estava determinada. As pessoas voltavam com os seus cães. Ninguém vira Vida. Ela estaria completamente perdida. Uma hora e meia depois. Um cachorro corre rápido demais. Como eu teria forças para retornar para casa sem ela? Como é possível num período de duas horas sair de um estado de perfeita comunhão para um de total miséria, desgraça? Tudo isso e um pouco mais passava pela minha cabeça. Eu precisava de força. Fui aos poucos recuperando a voz. Timidamente comecei a chamar pelo seu nome outra vez. Nisso finalmente um guarda-florestal me ligou dizendo que tinha ido à entrada e não tinha me encontrado. Disse-lhe que minha amiga estava lá, que eu estava procurando minha cadela. Mas onde é essa entrada? Expliquei-lhe. Sei, como é a sua amiga? Expliquei. Vi ninguém, não. Ela está lá, o que mais quer que eu diga? Do que a senhora precisa mesmo? Que eu lhe ajude a encontrar um cachorro? Ninguém jamais pediu isso! Olha aqui – com voz recuperadíssima -comecei a gritar com o imbecil do guarda que fazia de conta que não sabia o que eu tinha solicitado – se você puder, ouviu? Se não LEAVE ME ALONE, DON’T CALL ME ANYMORE porque eu vou encontrá-la... gritava isso quando me aproximava do local de onde ela havia saído em disparada atrás do veado. De repente, mal pude acreditar! Era uma visão celestial. Sentada no mesmo local, como estátua, com as patas dianteiras levantadas, aparentemente assustada, lá estava minha Vida. I FOUND HER, gritei para o guarda e desliguei o telefone. Corri até ela sem que ela se movesse. Abracei-a. Ela começou a me lamber a cara sem parar. Foi um inesquecível. Dá uma dor na barriga, algo como dizem em inglês bitter-sweet quando me lembro daquele momento. Quis dizer-lhe, ela uma cadela, o quanto a amava e o quanto estava arrependida de tê-la deixado sem a coleira. Teria ela entendido? Disse-lhe do mesmo jeito uns bons bocados de I love you. Quis carregá-la mas não tinha forças. Pus-lhe a coleira. Parecia agradecida. Caminhava calma no princípio, cuidadosa, bem ao meu lado, às vezes virava a carinha para me encarar. Entendi que não queria se perder de mim. Que sabia que pertencíamos uma a outra. Eu estava extasiada. Uma calma repentina começou a remodelar o ser humano que dizem que sou.  Poucos minutos depois, Vida caminhava como sempre o faz com o focinho no chão a cheirar tudo como se não se desse conta do que acabava de ter passado. E isso é só mais um dos atributos valiosos do cão: a capacidade de esquecer e de se adaptar.